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Francisco Marcelo Ferreira, 45, anda devagar, demonstrando as sequelas que ainda resistem ao AVC (acidente vascular cerebral) que sofreu no fim do ano passado. Sorridente agradece pela oportunidade e se mostra ansioso para conceder a primeira entrevista, após o recente problema de saúde. Ao tratá-lo como senhor, ele rebate dizendo “Artista não envelhece, artista vive eternamente na primavera de suas obras”. E em meio a sorrisos e lembranças ele nos conta um pouco sobre sua vida.

 

Marcelo Lancellot, como é mais conhecido pelo público, iniciou sua carreira musical no Rio de janeiro, mais precisamente na Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, onde foi acolhido pelo Padre Valter. Dividia seu tempo entre o trabalho de garçom e sua atuação como baterista e back vocal de conjuntos musicais.

 

Hoje, com quase 30 anos de carreira, Marcelo é autor de mais de 200 composições, possui mais de 50 músicas gravadas  por artistas locais e de outros Estados. Embora o seu forte seja a música nordestina, domina vários estilos musicais. Admirado e respeitado por músicos e  pelo público que conhece seu trabalho, Marcelo, após tratamento e fisioterapia, logo irá voltar a encantar os ouvidos atentos e receptíveis a boa música. 

A origem do nome "Lancellot"

COM A PALAVRA - Marcelo, como a música surgiu em sua vida?

MARCELO LANCELLOT - Nos anos 70, eu fui embora de Campina a galope. Aqui era meio rural e meio urbano. Fui arrancado de uma escola em que estava indo muito bem e enviado para dentro da favela da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Então vi uma realidade completamente diferente daquela que eu vivia na minha família. A partir dos 12 e 13 anos de idade eu já estava vendo coisas que eu só assistia no cinema: todo tipo de abuso. E só tive duas opções, me adaptar ou me adaptar com aquele novo estilo de vida. E a música surgiu na minha vida quando eu comecei a morar numa igreja que existe hoje no Rio de Janeiro e chama-se Igreja Nossa Senhora dos Navegantes. Desde criança gostei de escrever, sempre gostei de compor e de certa forma sempre fui meio atormentado para escrever e musicalizar essas coisas.

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C. P - A gente percebe que não dá pra viver só da música. Sempre tem que ter um trabalho paralelo senão você não caminha. Isso é uma realidade só daqui ou você viveu isso muito no Rio também?

LANCELLOT - Essa realidade vem de longe. É muito raro alguém viver totalmente da arte de um modo geral, mas pode-se viver, quando ele consegue ser, desculpe o termo, um artista da corte, aquele que agrada aos poderosos: quando ele consegue ser um artista da corte, ele tem transito livre em todos os contratos, em todas as casas, em todos os eventos, tem beneficio, ganha status, etc..

 

C. P - A opção é se adaptar ao marcado?

LANCELLOT - Na verdade, é o seguinte: existe a música que você faz, a que você trabalha, a música propriamente dita e existe a música da sobrevivência. Uma boa parte dos músicos da noite, conheço uns mais não vou citar nomes por questão de respeito, não consegue se mostrar como instrumentistas. Ele precisa ganhar um cachê, então ele vai tocar aquilo que o mercado está absorvendo, e então o que é que o mercado está absorvendo? Aquilo que a mídia está vendendo. O que é que a mídia está vendendo? Aquilo que a gente concede, sem meias palavras.

 

C. P - Em relação à Campina Grande e o mercado da música campinense, como você se vê nesse mercado?

LANCELLOT - Hoje eu me vejo como sempre vi. Essa janela que se abre com muita facilidade para algumas pessoas, isso não tem acontecido comigo. Espero que comece a acontecer agora (risadas). As coisas têm sido um pouco mais difícil, talvez por eu ser um pouco exigente em questão de repertório mesmo com a música nordestina que é a música que me destinei a trabalhar. Eu gosto de compor e de gravar alguma coisa que tenha conteúdo, música pra mim, ela tem que ter conteúdo, tem que ter história, começo meio e fim. Eu respeito muito quem faz, mas eu não consigo fazer música ruim. Até já tentei para ver se seria melhor adaptar, mas é como se algo estivesse me cobrando: ‘olha você não está aí para fazer isso, você está aí para compor e cantar o que presta’. Então eu sou muito cobrado pela minha própria consciência, não sei se é consciências, eu não sei o que é. Eu só sei que sou muito cobrado quando faço uma coisa que não condiz com a minha realidade espiritual.

 

C. P - Você sentiu alguma diferença de tratamento ou na receptividade das instituições em contratar você para shows após o AVC?

LANCELLOT - Realmente há uma de diferença tratamento com artista. Só que para melhor. Quero aqui aproveitar o momento para agradecer a todos que foram até a minha residência, aqueles que conseguiram me achar, aos que não conseguiram e aos que me encontraram através do telefone. Fui muito bem assessorado por muitos amigos, por muitas pessoas e até achava que estava sozinho no mundo, mas não estava.

Agora como artista, sobre contratação, eu acho até que eu devo ser consciente. você precisa de uma pessoa naquele momento em cima de um palco que cante e que toque ou que pelo menos que cante e alguém acompanhe e que tenha uma estrutura com você. Você vai contratar um produto e você quer aquele produto em cima do palco e se aquele produto está com avaria como era o meu caso, eu compreendo muito perfeitamente a não contratação por parte de algumas pessoas, por parte de pessoas que até queriam, mas duvidavam e você não pode pôr em dúvida um público.

 

C. P - E depois do ocorrido, você já fez algum show?

LANCELLOT - Já. Fiz um Show aqui no Parque do Povo e até achei que ia ser deficiente, mas não foi. Foi até melhor do que alguns que eu fazia. Talvez, porque eu estava me colocando à prova. Talvez seja isso: essa vontade de fazer que tenha me impulsionado.

 

C. P - Quando você estava no Rio, começou a ensinar música para algumas pessoas lá do morro. Como foi essa experiência para você?

LANCELLOT - Essa experiência foi boa porque era um trabalho feito mais para comunidade. Eu sempre fui muito ligado à religiosidade. Eu morava na igreja e nessa igreja tinha uma turma de crianças e eu botava essas crianças para cantar. Levava um grupo jovem dessa igreja aos festivais de música. Nós formávamos dois grupos e em todos os festivais que nós íamos, na época, nós trazíamos sempre um troféu para casa, era muito bom. Foi um período muito empolgante. entre Rio de Janeiro e Paraíba, eu já participei na área musical de mais de 20 festivais, muito mais de 20. acho que dá uns 30 por ai.

Às vezes as pessoas comentam: “você tirou algum garoto da droga?”. Eu digo: não. Só quem consegue tirar criança da droga é Deus e um projeto social muito bem elaborado e muito bem executado: não vai ser uma criatura isolada que vai tirar, e nem por isso você deixa de fazer a sua parte.

 

C. P - E em Campina Grande?

LANCELLOT - Aqui em Campina Grande fiz parte de um projeto chamado Clube do Forró, que é uma entidade da Associação Pública de Forró, uma associação que criamos. Essa entidade foi convidada a administrar o projeto dos Cabras do Pife, esse projeto tem dança, tem percussão, e a parte do violão ficou comigo. Aí eu passei um tempo fazendo esse projeto, depois que acabou a parte de violão, porque não saia mais nenhum provento, alguém chegou para mim e disse, “olha você por enquanto pode parar, que não tem mais dinheiro para essa área”. Então a minha resposta foi enfática “eu vou continuar a ensinar esses meninos de forma gratuita” e passei mais de um ano no projeto. Fiz campanha com meus amigos da igreja e arrumei instrumentos para alguns, entendeu? Inclusive eu estou com dois instrumentos em casa para ser entregues a duas crianças, não sei quais são, Deus vai iluminar quem são essas duas crianças, estão guardados.

 

C. P - Marcelo, vamos falar um pouco sobre sua vida pessoal, sobre os amores, casamento e filhos.

LANCELLOT - Eu tenho três filhos e seis netos. Eu tive uma vida conjugal e dessa vida foram geradas essas três criaturas, duas mulheres e um homem. De vez em quando a gente se vê e tal. Depois eu vim para cá e aqui eu me casei de novo e tenho um casal. Lá no Rio é Thiago, Denise e Deise, são os que eu tenho lá e aqui eu tenho Anderson que é o mais velho e já é casado e Daiane faz enfermagem na Universidade Federal. É a caçula e está noiva e pretende se casar.

 

C. P - Algum com talento pra seguir a carreira do pai?

LANCELLOT - Quem tem muita tendência para música é a Daiane, a caçula. Mas ela não quer mexer com instrumento. Ela quer ser professora de enfermagem e eu acho isso maravilhoso, estamos trabalhando para isso. Às vezes eu agradeço por ela não querer mexer com isso, porque o caminho da arte é árduo. Eu sei como esse caminho é tortuoso.

 

C. P - Como você se relaciona com sua família, você acredita que o seu trabalho atrapalha um pouco essa relação?

LANCELLOT - Eu tenho uma convivência muito boa com minha família. Graças a Deus não tenho problemas com nenhum membro da família e acho que isso é uma grande riqueza. Talvez se eu tivesse a fama que muitos têm... Eu já quis muito isso e eu tive capacidade, Graças a Deus e modéstia parte. Só não tive oportunidade, mas hoje eu não sei se eu quero mais, sabe de não ter sossego? Eu não sei se eu quero mais isso, porque talvez se eu tivesse passado pelo caminho da fama, talvez eu não tivesse uma relação tão boa como eu tenho com os meus filhos. Nenhum deles tem problemas com droga, com álcool, tudo são pessoas simples, pessoas que eu converso abertamente e às vezes eu digo para elas o seguinte: ‘olha seja você quem for lá no futuro, tenha você o patrimônio que tiver, quer ser feliz? Tenha simplicidade, seja bem simples. Pronto essa é a melhor receita que existe para você ser uma pessoa feliz, simplicidade’.

Foto: Elissama Barreto

Entrevista produzida por:

Elissama Barreto

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Carreira grandiosa e pouco reconhecimento

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